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"[...] cá entre nós, isto é uma parábola: um bom astrônomo saberá ler nas estrelas sinais e símiles que nos permitem silenciar muitas coisas." (F.W. Nietzsche)

domingo, 25 de setembro de 2011

Vênus Astrológica

Vênus Astrológica

Ella guardava suso, ed io in lei” [Ela olhava para cima, e eu para ela]
            - Dante Alighieri


            Um astrólogo notou certa vez, ironicamente, que sua página sobre Vênus era a segunda mais visitada, perdendo apenas para uma dissertação sobre o signo de Escorpião e o sexo. Vênus, denominação romana para a deusa grega Aphrodite, vem do termo proto-indo-europeu –wen: desejar, cobiçar, buscar, ser satisfeito (notar a conexão com o sânscrito vanas, desejar, e com o saxão wynn, júbilo, alegria – o mesmo significado exotérico da Runa Wend ou Wunjo). Dá para perceber a importância superlativa dela na vida diária de uma humanidade que deseja de maneira cada vez mais sedenta encontrar um sentido de felicidade.
            Algumas vozes já se ergueram para denunciar o fato da deusa Vênus estar nos dias de hoje extremamente frustrada e magoada com sua humanidade – nas palavras de Dana Gerhardt, “não há no mundo de hoje sequer UM templo honesto para ela”; por milênios a superestrutura cultural da humanidade foi modelada pelos sacerdotes, tanto no ocidente quanto no oriente, do judaico-cristianismo, do lamaísmo, e de outras forças religiosas que veneram o criador masculino, antifeminino e beirando mesmo a misoginia e o homossexualismo no seu repúdio a mulheres (não nos esqueçamos do mito Duska do Tibet, que conta que esta casta de monges nasceu do fruto da união do criador com um sacerdote por quem se apaixonara... e não nos esqueçamos também que a ‘esposa’ de Jehova é sua congregação, sua Ecclesia, composta de sacerdotes... homens! Nos termos mendazes e cruamente sinceros de São Paulo, o grande odiador do feminino, “Mulier taceat ad ecclesiam”: que a mulher se cale na igreja!).
            Vamos aplicar aqui uma lente de aumento (e depois, um microscópio) para enxergar a questão a fundo: Vênus, a Deusa aparentemente graciosa e jovial, leve, descompromissada, risonha e promíscua, senhora dos prazeres dos sentidos e do amor (tanto eidético quanto sexual) – não deveria ela estar mais contente numa época onde os valores morais restritivos do judaico-cristianismo parecem ruir? Onde o prazer dos sentidos é buscado a cada instante?
            Aphrodite é muito, muito mais do que isso. Mas vamos por enquanto aceitar essa visão adolescente de uma Deusa que sabe apenas o prazer e a beleza. Sabe-se buscar e fruir o prazer, hoje em dia? Primeiro há toda uma rede de precondicionamentos morais, fruto dos últimos milênios de influência cultural do sacerdócio monoteísta saturnino: quando se busca o prazer, deve ser em segredo, esgueirando-se pelos cantos como ratos, pois a satisfação mera e simples não pode ser assumida sem ser julgada indecorosa, indecente, etc, etc, etc – perdeu-se a coragem de assumir o que se quer, de ser um “saudável monstro dos trópicos” como César Bórgia ou Calígula, homens demonizados apenas por serem extremamente livres para se submeterem ao julgamento moral do sacerdócio.
            E aqui estamos falando de grandes e pequenas coisas, do prazer de uma orgia ou da conquista de algo caro após anos de luta árdua, a pequenos prazeres como achar e comprar um pingente do seu gosto, ou relembrar o gosto de um doce favorito da infância. Vênus preside sobre todas as coisas boas e agradáveis da vida, uma barra de chocolate, uma risada com pessoas queridas ao redor, o toque de um tecido fino. A humanidade busca sofregamente a auto-gratificação dos sentidos, porém soterrada por premissas morais e por pressões sociais que colocam o valor do prazer acima do valor do próprio Ego – de fato, cria-se uma expectativa exorbitante sobre o prazer, que vem de uma prévia diminuição do valor do Eu (basta ver para isso todo o discurso cristão sobre os “vermezinhos de Jacó”, sobre humilhar-se no pó etc, etc, ou o ditado chinês que se ensina para as crianças de berço, “torna pequeno o teu coração”, e toda a baboseira new-age esotérica de “somos pequenos perto do cosmo”, “somos um grão de poeira no universo”, etc, etc, etc).
            A humanidade hoje é infeliz e alquebrada em boa parte por conta desta diminuição sistemática do valor do Ego. Quando se busca o prazer – num relacionamento amoroso, na estética, nas posses materiais, essa expectativa fantasiosa de que “isso trará minha felicidade” está fadada a se tornar vazia, porque já parte da premissa de que você, eu, cada um, não é nada, não tem valor, precisa de complementação externa. Usando as excelentes palavras da sra. Gerhardt, “cada vez que agimos assim, estamos enxotando nossa Vênus para as ruas, com uma tigela de mendigo nas mãos”. E nem é preciso dizer que esmola não enche a barriga de ninguém.

            Vamos começar a nos aproximar, vagamente, de Vênus. Olhem seu glifo: o círculo, representando o Espírito, sobre a cruz da matéria. Conectados, mas sem que um invada ao outro. “Colados” por uma superfície de contato. Existe um duplo movimento aqui, de cima para baixo e de baixo para cima. No movimento decadente, o Espírito perde seu centro, seu Ego, e vai buscar seu prazer, seu sentido, na matéria. No movimento ascendente, o Espírito sublima a matéria, depois de usá-la egoicamente para si e transcende-la. E muita coisa cabe aqui. Seus signos são Taurus, o Touro, mais focado na parte material (mas também psicológica) do desejo de segurança e estabilidade, e Libra, a Balança, que representa o lado mais espiritual e refinado do gosto artístico, da eterna busca pelo belo.

            A mágoa de Vênus é que a humanidade manchou e degradou o prazer, porque perdeu seu centro, seu Ego, e busca o prazer não para desfrute, não para a afirmação da Vontade própria como sentido da existência, mas como uma muleta provisória para se manter de pé: mesmo buscar o prazer hoje se tornou um sofrimento. O objetivo do prazer não é ele em si – o hedonista saudável não é um glutão sôfrego, mas usa a perseguição e captura do prazer como um simbolismo do imperativo Fiat Voluntas Mea: “faça-se a MINHA vontade sobre esta Terra”, numa atitude de desafio ao sofrimento do Karma e de descoberta gradativa das próprias capacidades de conquista e mesmo de fruição, numa espiritualização em contínuo refinamento dos sentidos e das artes.

            A partir desta compreensão inicia-se o movimento ascendente em Vênus: os prazeres são parte importante da vida, crucial até, desde que eles sirvam ao Ego, a nós, e não o ego dependendo de amores, posses, dinheiro, prestígio, estima alheia para se definir. Vênus nos instiga, sedutoramente, a tomar posse da nossa vida e assumir plena responsabilidade por ela, a organizar do que dispomos ao nosso redor, e usar o que nos agrada, não ser usado pelas coisas. Quando nosso Ego (Espírito, Círculo) é o centro da figura, e a cruz da matéria é um mero apêndice e instrumento, estamos em condições de nos tornar seres fortes e plenos.

            Mas vamos mais fundo ainda. Vênus é sim a regente de todo o agradável, de tudo o que nos faz felizes, mas o que é que buscamos? Dinheiro? Sexo? Itens caros? A Arte? Um ideal político? Em níveis mais conscientes, ou menos conscientes, a nossa busca está condicionada a algo etéreo, algo ideal, que Platão descreveu como “o espelho de nossa própria Alma”: se temos em conta o antigo mito dos gigantes bicéfalos que foram repartidos ao meio pelos deuses, descobrimos que a experiência humana é um eterno ser-pela-metade: toda Estética, toda busca pelo prazer é uma busca profunda pela metade-de-si-mesmo perdida, por aquilo que nos completa e eleva. Esta é a força e o significado de Vênus em um mapa: o que nos agrada, e portanto, o que buscamos para nossa plenitude? 

E cá encontramos um significado mais profundo da Vênus astrológica: sua posição e configuração no mapa se traduzem como um Norte eidético, uma direção para a qual estendemos nosso ideal de felicidade, um ideal que nos inspira a eternamente persegui-lo, dançando tentadoramente sempre um passo à nossa frente como a sedutriz sorridente que é Venus, nisto se aproximando ao Eterno-Feminino que nos inspira e eleva (nas palavras de Goethe, “Das Ewig-Weibliche zieht uns hinan”: o Eterno-Feminino atrai-nos para cima, ou nas palavras excelentes de Dante que abrem e resumem este artigo). Sua regência do signo de Libra é compreensível, como a força que representa aquele eterno ideal platônico de beleza que perseguimos sem tocar ao longo da vida: astronomicamente, Venus é a Estrela da Manhã ou a Estrela Vespertina, o ponto mais brilhante dos céus noturnos, ao lado da Lua, que orienta os navegadores.


Mais do que isso ainda, Aphrodite é a Deusa para quem os troianos rezaram quando os exércitos gregos se postaram às suas muralhas. Pergunta-se o que deu nos troianos, para pedir ajuda a uma entidade delicada e feminina, senhora dos prazeres e das artes, para defender a cidade, no lugar de entidades mais belicosas como, digamos, Ares, ou o próprio Poseidon que era patrono da cidade. Ou, se queriam uma Deusa, por que não Atena, a estratega que já nasceu armada da mente de Zeus – é algo a se perguntar.

Na realidade, Atena é uma Deusa belicosa, mas ofensiva. Ela conhece a iniciativa, o ataque, as cargas de cavalaria e as manobras estratégicas em campo aberto. Aphrodite é sua complementação militar como Deusa da Citadela, senhora das armadilhas e das muralhas, organizadora da defesa dos cercos e das cidades. Isso é inusitado (não tanto, se pensarmos em sua regência do signo de Touro como um signo obcecado por segurança).

Sim, Aphrodite possui uma manifestação terrífica, belicosa, conhecida dos troianos e também venerada em Corinto, como Kythereia, a defensora dos cercos – traduzindo isto em termos astrológicos, Venus é sim tudo o que nos inspira e nos eleva, nossos prazeres e ideais de ser, e também a força que protege nosso senso de individualidade frente às crises de uma vida que teima em contrariar sistematicamente nossos esforços e desejos; através daquilo que desejamos e aspiramos é que organizamos a idéia do que é nosso Self, do que consiste nossa individualidade e nosso ser-único no Universo, uma idéia que defendemos e fazemos persistir apesar de todos os reveses, de todos os esforços do Cosmos para dissolver nosso Ego numa consciência unificada universal: se é um lado da Deusa que foi oculto e soterrado por mais de dois milênios, é porque o verdadeiro Amor em Armas é talvez a força mais terrível que um ser humano possa empregar, e cabe aos sacerdotes a missão sistemática de ocultar e monopolizar as fontes do poder interno da psique humana.

Quem já não teve crises de personalidade, quando não se sabe mais aquilo que o define e se duvida dos próprios ideais como válidos que atire a primeira pedra. Para estes eu pergunto – se em algum momento após a crise, em meio à vontade de não existir mais, não somos invadidos por uma força reanimadora, uma nova afirmação de nossos ideais e desejos mais profundos, uma nova ou renovada afirmação de que SOMOS, e devemos continuar persistindo – quem já sentiu essa força renovadora do desejo, essa pulsão súbita do ânimo, pode sentir-se privilegiado, pois a doce e delicada Deusa saltou à sua frente para defendê-lo, com seu escudo invencível, de todas as forças da loucura e da dissolução da consciência – com a eterna inspiração daquilo que nos mantém vivos e fortes.

Encerro com uma música de mais de novecentos anos de idade, que mostra como funciona Vênus dentro da psique: o rapport, o maravilhar-se, a inspiração, e a perseguição sem fim de uma beleza recém-percebida, que insufla a existência de sentido e coragem valorosa (letra abaixo):





O rico esplendor dos baixios e colinas,
Dos bosques e rios e férteis campos,
Penetraram em mim, dissiparam meus pesares,
Expulsaram meu luto, esmagaram minha dor
Eu segui a célere corrente do rio
Minha mente transbordando um exultar
E quanto mais fundo adentrava aquele idílio aquoso
Mais e mais meu coração tamborilava
Com a força de um júbilo arrasador
Pois Fortuna tende a, o que quer que nos mande,
Cobrar primeiro as circunstâncias em dividendos
E ainda mais, e mais, e ainda mais

Dado todo o tempo do mundo
Eu não poderia explicar o que encontrei ali
Um coração terreno não tem suficiente terreno
Para sentir um décimo dos prazeres divinos
Então eu pensei que o próprio Paraíso
Estivesse ali, se estendendo pelo outro lado,
E pensei que a água talvez fosse um truque
Separando dois jardins de delícias,
E supus que a Cidade Celestial ficasse
Logo ali do outro lado do vale
Mas a água era funda, e eu não ousei atravessar
Embora o desejasse mais, e mais e ainda mais

Mais e mais e ainda mais,
Ansiava por ver o que estava além
Pois embora fosse belo aonde eu estava,
Tão mais amável era o outro lado
Eu busquei um ponto seguro de travessia
Mas quanto mais olhava, mais perigos encontrava
Eu sabia que não deveria hesitar
Diante de qualquer dificuldade mundana
Aonde os prazeres eram tão intensamente deliciosos
Então uma nova idéia se apoderou do pensamento
E a maravilha em minha mente cresceu
Mais e mais e ainda mais.

Ennoia, Isaria,
Aus der Lichte der Mond
Aus der Dunkel der Nacht
Nahst du dich in deiner Macht

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