Netuno Astrológico
“Kilmeny look’d up with lovely Grace
But nae was a smile seen on Kilmeny’s
face,
As still was her look and as still was her
e’e
As the stillness that lay on the emerant Lea,
Or the mist that sleeps on a waveless Sea.”
(Mediaeval Baebes – Kilmeny)
Não
está claro se foi na noite de 23 de outubro de 1846 ou se na manhã seguinte,
que Johann Gottfried Galle, astrônomo checando as previsões teóricas do francês
Urbain LeVerrier, descobriu Netuno. LeVerrier previu matematicamente a posição
do planeta a partir das perturbações de campo gravitacional que ele produzia em
Urano.
Mal
Netuno entrou na superestrutura cultural humana, seu efeito se fez sentir: uma
névoa se estendeu sobre as descobertas de Galle e LeVerrier, uma campanha de
enganos, trapaças e confusões para confundir e desacreditar os cientistas foi
levada a cabo pela comunidade científica inglesa, com o orgulho ferido pela
conquista de um francês e um alemão.
Netuno,
sob o arranjo aristotélico das esferas planetárias, é a oitava superior da Lua,
representando paradoxalmente o que seria o inconsciente e instintivo dentro da
esfera de consciência – explicarei isso em detalhe. A astrologia convencional
considera Netuno uma oitava superior de Vênus, porque a influência de ambos os
astros torna a pessoa, na área afetada, poética, sonhadora e artística, porém
por razões e mecanismos totalmente diversos! Vênus astrológica é a âncora e o
cerco que sustentam o Ego, a consciência individual, e é refinada por Saturno,
que lapida e solidifica o Ego através das lições negativas (notar que todas as
oitavas respectivas guardam, uma em relação a outra, uma relação de
transcedência, de conscientização,mas também de antagonismo!) – já Netuno opera
na Esfera de Consciência de forma semelhante à Lua, servindo como um instinto
consciente de olhar “para cima”, para o que há além, no melhor dos casos, e no
pior dos casos como uma força lúdica de fantasia e auto-engano.
Saturno
introduziu a Dor da Consciência, do Espírito egóico eterno preso na estrutura
anímica, e Urano, primeira esfera transcedental, opera para canalizar toda a
tensão agônica alma-espírito para uma “missão maior” ou símbolo sagrado que
fagocita e captura a Consciência para um fim coletivo. Entretanto, nem todas as
estruturas psíquicas estão aptas a enfrentar tal choque violento – ao contrário
do que o universalismo massificante e igualitário da ideologia moderna prega,
diferentes humanos nascem com diferentes capacidades psíquicas (ou sêmicas, ou
energéticas, dá no mesmo), além do perigo constante de enlouquecimento em
diversas circunstâncias de crise psicológica que a vida nesse Samsara nos
oferece. A Esfera de Netuno serve para frear e salvar a psique destas crises,
da maneira que exporei.
A
ação normal, positiva, de Netuno, é a de conferir ao indivíduo o sexto sentido
do Ajna Châkra, e abrir sua visão para a percepção de planos de significação
mais oblíquos. É a esfera astrológica que os rsis, videntes, xamãs e profetas
operam, e como a Lua representa o lado oculto e primevo da realidade física,
Netuno abre para a Consciência a percepção do lado oculto e primevo do Plano
Astral, para quem tem força volitiva o suficiente para nadar até o fundo das
fossas abissais astrais nas costas do Deus do Mar.
Devido a isto, diz-se que Netuno é forte em pessoas místicas, sensíveis, sonhadoras e algo frágeis e deslocadas da “normalidade”. Seu glifo, chamado popularmente de “tridente de Poseidon” (o que é uma ironia se o compararmos à Vruna Gibur), representa o crescente da personalidade voltado para o alto, para o “além”, perfurado pela cruz da Matéria e tentando se elevar para além dela.
No entanto, Netuno e os netuninos são realmente como o oceano de gás hipergelado deste astro remoto, ou como a profundeza de nossos próprios oceanos – profundos, multíplices, obscuros e sumamente confusos. Com frequência aquilo que se acha nos abismos não é agradável ou tolerável... como Lovecraft disse brilhantemente, a maior misericórdia da mente humana é a incapacidade de correlacionar simultaneamente todos os seus conteúdos, algo que o indivíduo muito netunino chega perigosamente perto de cumprir com sua psique profunda e voltada “para o além”. E para evitar a crise e a loucura, o netunino se tornou um mestre do engano – não do engano eloquente e cheio de ardis do mercuriano, mas do auto-engano da fantasia, do jogo e do vício.
Nos estudos da tipologia noológica, Moyano define o tipo psíquico Lúdico como o que não transita o Labirinto interior através de vivência, mas de simulacro: o lúdico cria uma imagem de si mesmo vivenciando o que deseja, para assim não correr o risco. Por exemplo, desejando ser um guerreiro, o lúdico se cercará de objetos culturais bélicos, se vestirá, portará e falará como um soldado, e conhecerá história militar em profundidade, mas sem jamais se arriscar numa luta real. Num nível mais profundo,o lúdico se crerá altamente espiritualizado pelo seu conhecimento de religião, ocultismo ou gnosis, porém não se arrisca em experiências gnósticas ‘na própria pele’, se limitando a adular a visão artificial de si mesmo autocriada como um iniciado ou um místico.
Tal artifício é também uma especialidade de Netuno – que diante de uma verdade interior desagradável cria uma miríade de névoas e ilusões para espelhar ou mascarar aquela verdade crua, e especialmente mascarar a realidade de si mesmo (por isso, no glifo, o crescente da personalidade está trespassado pela cruz da matéria como um espinho oculto, jamais verdadeiramente arrancado). Netuno rege juntamente com Júpiter o signo de Peixes, o signo regente da décima segunda casa, Carcer, “a Prisão” do subconsciente e da consciência oculta. O indivíduo lúdico, de todos os seres sencientes E conscientes (os seres tríplices, corpo, alma e Espírito), é o de menor força e escalão, justamente pelo fato de ser predominantemente confusão interna e simulacro; como exposto sinteticamente num poema romano,
“Ó, uma Rosa, uma Rosa pintada
Não é o todo, não pode
ser o todo,
Pois quem pinta uma flor
Não pinta sua alma
fragrante”
(Anon, “Suscipe Flos Florem”)
Na
tipificação popular, o pisciano é o indivíduo retraído, romântico, compassivo e
sensível, sonhador e desajustado da realidade. Um site descreveu vivamente, “pode-se
mergulhar na mente de um pisciano para encontrar apenas um turbilhão de águas
confusas; mergulha-se mais fundo, para encontrar mais confusão; mergulha-se
mais fundo ainda, e finalmente se encontra... mais confusão”. Do lado
jupiteriano, Peixes é Briareus, o titã incomensuravelmente forte que se ergue
do fundo do oceano ao comando de Thetys para defender Zeus com sua mera
presença intimidante, e tal é o poder da consciência profunda controlada pela
Vontade. Do lado Netunino, Peixes é Derceto: a donzela delicada e sonhadora que
se auto-iludia a respeito do marido para não ver seu desprezo, e que quando
encarou a realidade quis se suicidar lançando-se no mar; Poseidon a transformou
numa Sirene do mar, uma Sereia, e quando Derceto seduzia um marinheiro para sua
caverna submarina, o marinheiro se maravilhava com o cenário romântico e lindo
da caverna num primeiro instante, mas no instante seguinte o véu da ilusão caía
e Derceto mostrava o horror real da caverna, literalmente matando o indivíduo com
o choque da desilusão e da realidade macabra subitamente confrontada (um choque
tão forte que matava mesmo antes do afogamento).
Essencialmente falando, a energia que flui e canaliza através da Esfera de Netuno vem da própria tensão polarizada de ilusão e desilusão, sendo ao mesmo tempo uma força de intuição e transcedentalidade, mas na falta de uma âncora mais firme para o Ego, na falta de uma Vontade sobrehumana, pode conduzir o indivíduo à postura lúdica, ou ao auto-aniquilamento pelo vício (álcool, drogas) ou pelo suicídio.
Parece estranho dizer que, na tipologia noológica, o tipo lúdico, que está abaixo de todos, está numa esfera superior à do tipo sacralizante, como Netuno está além de Urano. Afinal, um Brâmane está acima de um Vaisha... sem contar o fato de que nesse fim de Kali Yuga os Vaishas basicamente se confundem com os Sudras e toda classe de Mlecchas, de Párias, existe um outro fator mal considerado... para enfrentar um símbolo interior e se render a ele em adoração, deixando a mente ser engolida pela “ideia sagrada”, é preciso menos Vontade egóica do que o indivíduo infeliz que nadou fundo demais e não suportou a realidade. Assim como é verdade que quanto maior o gigante maior a queda, é frequente que aqueles que apliquem uma Vontade egóica maior sofram uma queda mais atroz...
A posição e as aspectações de Netuno no mapa astral mostram um contexto psicológico onde seja necessário o máximo de Vontade para mergulhar e elucidar; é um contexto através do qual uma grande criatividade pode brotar, e uma visão inicialmente bela e romantizada, como na ilusão de Derceto. Porém, uma vez confrontada a realidade de si mesmo e o choque passado que levou Netuno a criar a ilusão enevoada, se o símbolo for bem domado e superado gnóstica e psicologicamente, pode dar à consciência a força aterrorizante de Briareus para superar labirinto e Minotauro.
Encerro e concluo com um pensamento tipicamente netunino de um H.P. Lovecraft, que possuía Netuno em Gêmeos e soube portanto racionalizar e escrever sobre essa esfera astrológica difusa como ninguém mais:
“É uma
infelicidade que a massa humana seja muito limitada na sua visão mental para
pesar, com paciência e inteligência, aqueles fenômenos isolados, vistos e
sentidos apenas por alguns mais sensíveis psicologicamente, os quais se situam
fora da experiência comum. Homens de intelecto mais amplo sabem não haver
distinção clara entre o real e o irreal; que todas as coisas aparecem como
aparecem apenas devido a meios individuais físicos e mentais muito delicados,
através dos quais tomamos consciência das coisas; mas o materialismo prosaico
da maioria condena como loucura os instantes de sobre-visão que penetram o véu
ordinário do empirismo óbvio.” (H.P. Lovecraft, “A Tumba”)
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